domingo, 22 de janeiro de 2017

ANIMAIS NOTURNOS [NOCTURNAL ANIMALS]



"Animais Noturnos" (Nocturnal Animals), Tom Ford, 2016.


Noir Contemporâneo e Metalinguístico faz elegia à Vitória do Herói Romântico



por Fábio Dantas Flappers


Prólogo: Nos últimos anos, o Cinema nos deu duas obras superlativas, prestam um tributo à Literatura, em uma engendrada teia metalinguística onde realidade e ficção e autor e personagem são fundidos de forma brilhante e surpreendente. Em As Horas (The Hours), de Stephen Daldry, 2002, acompanhamos a lendária escritora Virginia Woolf (em performance assombrosa e premiadíssima de Nicole Kidman) durante o processo de produção de Mrs. Dellaway em 1923, obra que influenciará diretamente as vidas de Laura Brown (Julianne Moore), uma dona de casa em 1951 e Clarice Vaughan (Meryl Streep), uma editora literária em 2001. Em Desejo e Reparação (Atonement), de Joe Wright, 2007, a escritora Briony Tallis, em três fases de sua vida (as espetaculares Saoirse Ronan, Romola Garai e Vanessa Redgrave), manipula, rascunha, cria e recria a vida e a história de amor de sua irmã Cecilia (Keira Knightley) e Robbie Turner (James McAvoy). Ambos os filmes são permeados por signos, elipses e referências acerca do ato de criação, do elemento autobiográfico – em maior ou menor grau – presente em toda obra e da sensação de onipotência que todo escritor tem em si, a sensação  de brincar de Deus dentro de seu universo  criativo. Aos lado dos filmes anteriores podemos acrescentar mais um: Animais Noturnos  (Nocturnal Animals), de Tom Ford, 2016.



Capítulo 1: Nova York. Noite. Neve. Edward e Susan se reencontram na rua anos depois da Universidade. Há algo lúdico e romântico no ar. Eles conversam, flertam discretamente, marcam um jantar. Neste, descobrem afinidades,  fazem revelações, trocam confidências. Estabelecem aquela misteriosa e fascinante intimidade que surge entre estranhos, ou meros conhecidos.  Se apaixonam. Decidem se casar. Não tem a aprovação da mãe de Susan. Ainda assim, se casam.  Edward está escrevendo sua primeira obra. Como sua mãe lhe alertara, Susan passa a ver Edward como romântico, sonhador, sem senso prático. O casamento entra em crise. Pontos de vista divergentes. Ideais divergentes. Susan se permite flertar com outro homem. Susan comete um ato irreversível, definitivo. Susan deixa Edward de vez. 

Edward e Susan, afinidades, confissões e despertar de amor

Capítulo 2: Los Angeles. Noite. Fogos de artifícios e luzes artificiais. Mulheres obesas, nuas e provocantes de exibem sensualmente. Figuras robustas que poderiam soar renascentistas, mas que estão muito mais para criaturas barrocas. Fazem parte de uma performance na Galeria de Arte de Susan. Há algo fake e kitsch no ar. Susan sente-se aprisionada em um casamento mecânico com Hutton, um empresário distante e infiel, o homem por quem abandonou Edward há quase vinte anos. Susan sente-se infeliz, vazia, em um mundo de aparências, adornado por frivolidades e suportável com o uso de tranquilizantes. Um mundo frívolo e superficial, como boa parta de arte contemporânea que vende. Inesperadamente, recebe um manuscrito de "Animais Noturnos",  o novo romance de Edward. Ele avisa que está na cidade para o lançamento da obra e gostaria de vê-la. Susan descobre que o livro é dedicado a ela e começa a leitura. Em pouco tempo está totalmente absorta e profundamente tocada pela obra de Edward.

Susan: arrebatada pela obra de Edward

Capítulo 3: Texas. Tarde. Sol e poeira. Tony (novamente Jake Gyllenhaal, contraparte do autor vestido de personagem), sua mulher Laura (Isla Fischer) e filha India (Ellie Bamber) embarcam em uma viagem de carro pelo Texas. Decidem viajar a noite toda sem pausas. Na estrada deserta e sem sinal de mobile, percebem dois carros dirigindo paralelamente, ambos na mesma baixa velocidade. Tony tenta ultrapassar um dos carros para seguir adiante, mas os motoristas reagem com hostilidade e passam a provocar e intimidar a família, até cercar seu carro e fazê-los parar. Os motoristas são de três homens, liderados por Ray. Há algo soturno e ameaçador no ar. Laura e India, respectivamente reagem com medo e revolta, enquanto Tony procura ser conciliador e resolver a situação pacificamente. Gradativamente, o pânico e a tragédia se impõe nas estradas do árido sudoeste americano. 

Pesadelo de uma família: Ray e sua gangue atacam Tony...

... Laura e India em plena estrada deserta
 
Notas do Crítico: Tom Ford cria uma obra singular. Se já  tinha deixado uma excelente impressão  com Direito de Amar (A Single Man), 2009, aqui vai além. Ao adaptar a novela Tony and Susan, de Austin Wright, Ford cria um filme noir contemporâneo, com um universo  extremamente particular, que vai  idílico ao kitsch, do grotesco ao realista, em uma atmosfera instigante e intrigante. Como já dito, o filme é absolutamente metalinguístico, repleto de códigos internos e referências que o espectador só vai desvendando com o decorrer da narrativa. Nenhuma peça está ali por acaso. Tudo o que a olhos desatentos pode parecer desconexo, gratuito, mesmo apelativo e em desalinho é absolutamente proposital. Todos os signos e pistas estão às claras, basta atenção e percepção  para decodificá-los. Um exemplo são os personagens coadjuvantes que interagem com Susan  - com exceção de seu marido Hutton, também presente no passado. Sua mãe Anne Sutton (Laura Linney), seus amigos Alessia (Andrea Riseborough) e Carlos (Michael Sheen), suas assistentes Sage (Jena Malone) e Alex (Zawe Ashton) e sua filha Samantha (India Menuez), todos tem uma única cena  no filme. Todos fazem pequenas aparições,  são  quase espectros, peças meticulosamente escolhidas para pontuar aspectos da personalidade de Susan - ou servir como sua consciência. Muito da aura do filme se deve à fotografia de Seamus McGarvey e sobretudo ao Desenho de Produção e Decoração de Cenários de Shane Valentino e Meg Everist, quase personagens servindo à narrativa.  Os cenários evocam um mundo materialista, regido por ostentação e pretensões gigantescas, que mais revelam sua fragilidade, gosto duvidoso e seu caráter descartável,  asséptico e impessoal. 

Tom Ford dirigindo Jake Gyllenhaal e Michael Shannon

Ford mostra-se um exímio diretor de atores e conta com um elenco estrelar e talentoso, bastante homogêneo e consciente de seu espaço. Adams  tem um papel difícil, que embora complexo é carregado de neutralidade, e nos passa toda a frustraçao e melancolia de Susan, atingindo seu ponto máximo na cena final, com olhar e silêncio potentes. Excelentes estão Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson e Laura Linney. Shannon é marcante e incisivo  como o policial Bobby, que vai guiar Tony na busca pelos criminosos;  pragmático, realista e cru, é o contraponto perfeito ao relutante Tony. Taylor-Johnson tem o melhor momento de sua carreira como o hipnotizante e assustador Ray, em uma composição que em nenhum momento cai na caricatura ou no exagero. Linney é grande em sua única cena, como a Sra. Sutton, mãe de Susan, lançando uma sentença que se revelará vital para a trama, comprovando a impressionante sagacidade das mãe sobre seus filhos. Gyllenhaal, o melhor ator de sua geração ao lado de Andrew Garfield e Ryan Gosling, tem mais um grande momento em uma carreira que segue irretocável. Edward é cativante em seus anos de juventude, e sua imagem se mantém onipresente, mesmo que quase invisível no tempo presente. Tony é frágil e comovente como o marido e pai devastado, destruído pela culpa e remorso, e convincente como o homem que se torna mais resistente e incisivo pela dor. Tony acaba funcionando como a imagem perfeita do herói trágico, em um intrigante inversão de espelhos criada por Edward.

Michael Shannon: detetive Bobby
Aaron Taylor-Johnson: Ray, delinquente e criminoso

Laura Linney: Sra. Sutton, mãe de Susan

O tempo presente é de Susan, é todo construído sobre suas insatisfações e desilusões, Contudo, embora o presente seja o ato de Susan, é Edward quem o conduz. É sua obra ficcional com tons autobiográficos que atinge a vida de Susan e abala sua rotina monocórdia, trazendo alguma luz e cor ao seu universo monocromático. Com sua obra de ficção, Edward exorciza seus fantasmas, trabalha seus traumas e realiza seu acerto de contas com o passado. Não cabe tentar descobrir as contrapartes ficcionais dos personagens reais. Não cabe adivinhar se Tony é Edward ou Susan, se Laura ou Ray espelhos da própria Susan ou se Bobby representa o alter ego forte de Edward. Todos são partes de Edward, pois ele está acima de todos, é o autor-criador. Estabelece um paradoxo se pensarmos na analogia com o conceito da morte do autor, de Barthes. Edward pode ser invisível, e também pode ser todos, pode ser partes, pode construí-los com fragmentos de si mesmo, de Susan, da Sra. Sutton, de sua própria filha. Pode ser todos e nenhum.
 
Edward e Susan em dias felizes
Edward faz uma descoberta chocante
Susan, surpresa com uma triste constatação.

Epílogo: Edward é o herói romântico. Idealista, um pouco ingênuo, sonhador.  O artista por excelência. Que precisa de incentivo, de apoio, de compreensão. Que persiste e acredita. Que, diante das rasteiras da vida e das cicatrizes que sempre vão arder, ainda insiste em ficar de pé. Que, ainda que tardiamente e com tempo defasado, crê poder chegar em seu objetivo e conquistar o seu lugar. Edward queria a confiança de sua amada. Queria que ela se mantivesse fiel a ele: "Quando você  ama alguém,  tem que ter cuidado com isso. Você pode nunca mais ter isso novamente". Edward foi menosprezado, desacreditado, traído. Mas teve forças para criar uma obra-prima feita de lágrimas e sangue, com a qual finalmente obteve reconhecimento e provou ser um grande escritor. E ainda pode dar sua mensagem final: ele venceu. Ele, tido por fraco, sempre foi realmente o forte. Susan, seu grande amor, tornou-se apenas uma escada para seu triunfo. Uma estátua que bem podia constar no acervo de sua galeria, sentada sozinha em um restaurante vazio, contemplando o que podia ter sido.


sábado, 21 de janeiro de 2017

A CHEGADA [ARRIVAL]


"A Chegada" (Arrival), Denis Villeneuve, 2016. 


Na Trilha Reversa do Desdobrar do Ciclo da Vida


por Fábio Dantas Flappers


...louise...hannah...chegada...viagem...passagem...portal...vida...morte...nascimento...existência...genealogia...cronologia...continuidade...narrativa...linguagem...memória...déjà vu...relativo...absoluto...paralelo...recomeço...fim...início...looping...
      

     Microcosmo e macrocosmo. Somos indivíduos dentro de um universo infinito. Cada um de nós com escolhas capazes de mudar o curso de nossa vida e do universo inteiro. A inteligência e o livre-arbítrio são atributos humanos, de origem divina. De uma esfera superior. De uma ordem maior. Com um propósito maior. 

Dra. Louise Banks (Amy Adams), linguista convocada pelo Governo...

     Dra. Louise Banks (Amy Adams), renomada linguista, é convocada pelo Governo dos EUA para uma missão urgente: decodificar a linguagem dos alienígenas que chegaram a Montana em uma nave. Em doze pontos diferentes da Terra naves ovais surgiram, fazendo com que os líderes mundiais montem QGs interligados para lidar com a situação e descobrir as intenções dos visitantes. Acompanhamos a incursão de Louise na missão, sempre sob o seu ponto de vista - detalhe importantíssimo - e descobrimos com ela seus desdobramentos. Quanto mais o filme avança em direção ao universal, mas se aproxima do pessoal, do individual, do íntimo. Em todo o percurso somos convidados com Louise a embarcar no contraste entre a imensidão do todo e a interiorização do ser. A tensão entre estas forças é latente e se mantém suspensa por todo o filme. Ao final, as peças se encaixam formando um todo, em seu próprio tempo, com sua própria lógica. 

... para estabelecer contato e decifrar a linguagem de aliens...

...e que acaba descobrindo mais sobre os humanos...
     
     Denis Villeneuve se consagrou com Incêndios (Incendies), notável filme canadense baseado em peça de Wajdi Mouawad. Indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, logo chamou a atenção de Hollywood e realizou o ótimo Os Suspeitos (Prisoners) e o interessante Sicario. Nestes filmes, temas como identidade, alocação, deslocamento e o advento de um fato inesperado que trará uma reviravolta existencial no protagonista são uma constante - sempre muito bem trabalhada. Mas é O Homem Duplicado (Enemy) - sua melhor obra até a data, juntamente com "Incêndios - o filme gêmeo de "A Chegada". Os protagonistas de ambos - Adam/Anthony (Jake Gyllenhaal) e Louise (Amy Adams) adentram, bem reticentes, em jornadas que, embora de natureza muito diversa, levam a um destino e conclusão surpreendentes e, até onde é possível dizer sem revelar além do conveniente, absolutamente pessoais. Mais que pessoais, personalizadas. Em ambos, os atores oferecem performances extraordinárias e são fatores essenciais para a credibilidade e êxito de seus filmes. Neste, a sempre excelente e especialmente iluminada Adams constrói sua Louise de modo comovente, mesclando força, tristeza, incerteza e esperança em doses admiravelmente equilibradas. Muito da magnitude do filme - a maior parte, aliás - reside em Adams. 

...sobre si mesma e sobre o desdobrar em reverso do ciclo da vida.

     Em um gênero tão rico como ficção científica, que propõe uma aliança entre Arte e Ciência, sempre orbitando em torno da Filosofia, da religião e de questões existenciais, "A Chegada" se impõe com dignidade, porém não atinge uma dimensão mais profunda. Neste sentido, o título inicial do filme e do conto de Ted Chiang que lhe deu origem, Story of Your Life (História da Sua Vida), é muito mais preciso. Ao optar por se estruturar sobretudo no humano, o filme não atinge a estratosfera mítica de obras-primas absolutas do gênero como 2001 - Uma Odisséia no Espaço (2001 - A Space Odyssey), de Stanley Kubrick, Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of the Third Kind), de Steven Spielberg e Contato (Contact), de Robert Zemeckis. Nestas, o humano também está demasiadamente presente. Mas além dele, há a força vital do espaço, seus misterios insondáveis. O espaço, a vida vinda de outros planetas e a relação de seus seres com os seres da Terra constituem o foco, a força motriz e razão primária. Em "A Chegada", acaba relegado a ser apenas o meio. Ainda com esta lacuna que pode soar decepcionante, é uma bela jornada.

...looping...início...fim...recomeço...paralelo...absoluto...relativo...déjàvu...memória...linguagem...narrativa...continuidade...cronologia...genealogia...existência...nascimento...morte...vida...portal...passagem...viagem...chegada...hannah...louise...




BOYS [JONGENS/ BOYS]


Boys (Jongens/ Boys), Mischa Kamp, 2014.




Correndo em Seu Próprio Compasso

por Fábio Dantas Flappers


     No primeiro frame de Boys (Jongens), de Mischa Kamp, Sieger (Gijs Blom) corre. Corre por ser atleta junevil em um time de atletismo se preparando para uma importante competição. Corre do clima tenso em casa, com constantes atritos entre o pai e o irmão mais velho, agravados pela morte da mãe em um acidente de moto, veículo que o irmão insiste em usar. Corre contra a inquietação interna de viver em uma pequena holandesa. E corre de/para si mesmo, por estar descobrindo seus desejos e sua sexualidade.
Sieger - vivido com frescor e sutileza por Blom -  e seu melhor amigo Stef (Stijn Taverne) acabaram de seu escolhidos pelo treinador do time para formar o quarteto de revezamento com Marc (Ko Zandvliet) e Tom (Myron Wouts). A curiosidade, atração e interesse entre Sieger e Marc é imediata. 

Sieger (Gijs Blom) corre, corre, corre...

Sieger e Marc (Ko Zandvliet) contemplam o imprevisível


     Boys é, sobretudo, um coming of age movie, um filme de rito de passagem, onde a orientação sexual dos protagonistas é irrelevante. Mesmo os conflitos que poderiam surgir por conta da relação entre dois jovens homens, não chegam a ser esboçados, pois as questões ficam restritas aos protagonistas,  ao seu próprio entendimento, aceitação e posicionamento sobre sua orientação sexual. A exceção é uma cena emblemática quase ao final do filme, envolvendo Sieger e seu amigo Stef em um almoço, onde este apenas com o olhar transmite mais que mil palavras. É provavelmente a mais bela e tocante cena do filme. 

O olhar atento de Stef (Stijn Taverne), melhor amigo de Sieger 
 
Sieger e Marc entregues ao despertar do primeiro amor

     O diretor Kamp constrói uma obra simples e bem intencionada que, mesmo sem aprofundar e desenvolver seus personagens em um roteiro mais consistente, ao menos alinhava com sinceridade um tema universal e atemporal. O filme não é um marco entre seus pares; não é um mergulho nas relações entre jovens gays como Parting Glances de Bill Sherwood, ou um tratado sobre amor juvenil e repressão como Clamor do Sexo (Spelendor in the Grass) de Elia Kazan, ou um retrato intenso sobre a descoberta arrebatadora do primeiro amor e suas consequências como O Segredo de Broleback Mountain (Brokeback Mountain) de Ang Lee ou Azul É a Cor Mais Quente (La Vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2/ Blue Is the Warmest Color), de Abdellatif Kechiche. Ainda assim, faz esboço digno e sensível do tema.
Ao final de Boys, Sieger continua correndo. Continua em movimento. Porém, agora em ritmo, velocidade e compasso próprio. E devidamente mais seguro de suas passadas.