domingo, 1 de junho de 2014

TODOS OS MUSICAIS DE CHICO BUARQUE EM 90 MINUTOS




Inventário Afetivo Vestido de Canções
por Fábio Dantas
 
                    A memória é um dos mais poéticos atributos do ser humano. As experiências, feitos e vivências dos homens, que formam o  somatório do que estes são e constroem sua identidade, ficam para sempre eternizadas, enquanto são lembradas. É uma das grandes mágicas da viver, e também um dos maiores milagres da Arte. O homem é um ser que pode sempre revisitar e reviver o que está inscrito nas tábuas de sua memória e nas entranhas de seu coração. Pobres são os que não tem memórias.

Chico Buarque e a equipe da peça
                    Chico Buarque é um patrimônio vivo. Dentre os grandes da música brasileira – Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto – é o mais prolífico e o que mais transitou por caminhos diversos. Ainda, o que construiu uma vasta obra dramática, produzindo para o teatro, cinema e TV algumas peças inesquecíveis. Um dos primeiros assombros em Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos é o fato desta só dar conta dessa obra dramática de Chico. Quando consideramos tudo que ele produziu apenas para  álbuns musicais, desconsideranto a dramaturgia, é que temos a real dimensão de seu Gênio e das razões pelas quais é o Mito que é. Todas as memórias de Chico - as líricas, as políticas, as amorosas – tecem uma teia de histórias e sentimentos, um mosaico de dor, beleza, amor, de ser e estar no tempo. Seja este tempo o presente ou um tempo idealizado. Como um tempo da delicadeza, um tempo encantado, como o próprio Chico indica na belíssima Todo o Sentimento, em parceria com Cristóvão Bastos na década de 80: “Depois de te perder, te encontro, com certeza, talvez num tempo da delicadeza/ Onde não diremos nada; nada aconteceu/ Apenas seguirei, como encantado ao lado teu”. Ricos e afortunados são os que mantém vivas as memórias.
 
"Precisa-se de Artistas"
                    De certo modo, a memória é um elemento que se impõe em várias obras de Charles Möeller e Claudio Botelho.  Cole Porter – Ele Nunca Disse que Me Amava, 7 – O Musical, O Despertar da Primavera, Gypsy, Um Violinista no Telhado, Judy Garland – O Fim do Arco-Íris, entre tantos outros, tratam de memória, recriam memórias, versam sobre o passado, em como o passado é definidor do presente e construtor do futuro. Alguns de seus personagens são espectros de um podia ter sido, outros são fragmentos do que foram, revistos por si ou pelos que lhes contam;  outros ainda lutam desesperadamente para vencer seus fantasmas do passado e se reinventarem, e ainda outros, vivem pelo que foram um dia, tudo que lhes resta é navegar no azul da nostalgia e contar, cantar, eternizar suas memórias e seu inventário afetivo. 
 
Claudio Botelho e Soraya Ravenle: dono da companhia e primeira-dama
                   E é precisamente a memória a abordagem escolhida por Charles Möeller e Claudio Botelho para construir Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos, em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, homenagem aos setenta anos de Chico Buarque, um sucesso absoluto no Rio de Janeiro desde o início de 2014. Mestres absolutos em Teatro Musical no Brasil, onde reinanm absolutos e sem pares, a dupla Möeller & Botelho entrega mais um espetáculo ímpar. A opção de cantar as obras-primas de Chico atrávés de um grupo de artistas de Teatro Mambembe, e dar a narrativa ao velho dona da companhia, interpretado por Botelho, foi um toque genial, servindo como alicerce dramático que possibilita altas doses de lirismo e momentos comoventes. Todas as figuras que integam a companhia – o velho dono e sua mulher sempre em pé de guerra, seu filho que simboliza o artista boêmio e trágico, a jovem que se torna rapidamente musa do grupo, o galã, a mocinha, a cigana, a cartomante – são emblemas, signos repletos de nostalgia de uma era em que o teatro – e o mundo – eram outros. 

Mulheres de Chico: Soraya, Malu, Renata, Lillian, Estrela
                     A cenografia de Rogério Falcão prima pelo minimalismo absoluto, com andaimes, grandes estruturas de ferro, que remetem a cenografia de O Despertar da Primavera. Os figurinos de Marcelo Pies traduzem toda a diversidade de uma trupe mambembe, com cores e panejamento bem diversificado, aliando a beleza de quem precisa encantar o público e a praticidade para quem está sempre em movimento, itinerantes correndo o país. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros é uma festa, dando o vigor e a dramaticidade necessárias e valorizando o elenco em belos momentos de recolhimento e intimismo. Um espetáculo construído a partir da obra de Chico Buarque exige um apuro músical no mínimo sublime. E Thiago Trajano e seus músicos o fazem com maestria. O próprio Trajano (violão), Priscilla Azevedo (teclado e acordeon), Marcio Romano (bateria e percussão) – além de Jules Vandystadt (que fez os arranjos vocais) – são excepcionais e dignificam cada nota composta por Chico Buarque. Dentro tantos números musicais excepcionais, é muito difícil eleger melhores, pois o nível de todos é muito alto. Alguns, contudo, definitivamente transcendem, seja pelo brilho dos intérpretes, pela concepção da cena ou por recursos inventivos. Geni e o Zepelin é forte, soando atual com os cartazes de protesto, nesse caso, protesto do mal. Não Sonho Mais, Invicta e Gota D’ Àgua, as três em solos arrepiantes de Soraya Ravenle, são três momentos de força visceral. O Que Será inicia com a versão bastarda À Flor da Terra e desemboca no hino À Flor da Pele, uma das mais extraordinárias composições de Chico – e da Língua Portuguesa.  Assim como Funeral de um Lavrador, Beatriz, Sob Medida e Samba do Grande Amor. Tango do Covil é um momento ímpar, inesquecível sob todos os aspectos. E Pedaço de Mim confere o momento mais belo e poético de todos, com os atores iluminando seus rostos com refletores. Absolutamente transcendental.

Davi Guilhermme, Malu Rodrigues, Estrela Blanco, Felipe Tavolaro: crias de O Despertar da Primavera
                     Todo o elenco já trabalhou com Möeller & Botelho anteriormente, o que certamente colabora para a fluência que vemos em cena. O personagem de Claudio Botelho é o narrador. A memória combalida que se esforça para se impor e continuar existindo. O personagem é comovente por si e Botelho o faz com gosto e notável prazer, com tons agridoces. Soraya Ravenle é excepcional, uma atriz plena e completa, no auge do seu domínio dramático e vocal. É uma DIVA absoluta, uma das grandes do teatro musical brasileiro. Lilian Valeska imprime sua marca muito bem, com um registro vocal personalíssimo. Felipe Tavolaro é o interprete menos beneficiado pela estrutura do espetáculo, o que tem menos chances, mas quando chega seu grande momento em Roda Viva, brilha com louvor. Estrela Blanco é uma presença agradabilíssima e mostra amadurecimento, embora em alguns momentos fique a impressão de que algumas canções não são as ideais para sua. Renata Celidonio é simplesmente arrebatadora. Com voz intensa e carisma impressionantes, é um dos pontos altos do elenco e uma figura da qual não conseguimos tirar o olhar. É uma força da natureza, na maior acepção do termo. Davi Guilhermme atinge aqui sua maioridade artística. Seu personagem é o que dramaturgicamente funciona melhor – ao lado do dono da companhia de Botelho – e personifica, como já dito antes, o artista boêmio, romântico, solitário, trágico. A construção do ator é minuciosa em gestos e expressões, especificamente no olhar intenso e vidrado. São claros os ecos chaplinianos em um personagem lírico, que poderia render uma trama só para si. Malu Rodrigues, já uma estrela da Companhia Möeller & Botelho, cresce cada vez mais como atriz, com maturidade evidente, inclusive mostrando sensualidade nunca vista antes. Já como cantora, Malu nem tem mais como crescer; já está pronta. Segue sem pares como a maior voz do teatro musical em sua geração.

"O que será, que será/ Qua dá dentro da gente e que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia"

Davi Guilhermme e Malu Rodrigues: performances de primeira linha

Malu, menina, mulher, musa e estrela da companhia
                      Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos faz jus ao Mestre Chico Buarque. Com suas elipses temporais e espaciais, com idas e vindas, dores e amores, e com a perenidade da memória, enaltece a obra do maior autor de história da música brasileira. Chico Buarque é um patrimônio universal.



TODOS OS MUSICAIS DE CHICO BUARQUE EM 90 MINUTOS

Elenco
CLAUDIO BOTELHO
SORAYA RAVENLE

DAVI GUILHERMME
ESTRELA BLANCO
FELIPE TAVOLARO
LILIAN VALESKA
MALU RODRIGUES
RENATA CELIDONIO

Músicos
THIAGO TRAJANO (violão)
PRISCILLA AZEVEDO (teclado e acordeon)
MARCIO ROMANO (bateria e percussão)


CHARLES MÖELLER & CLAUDIO BOTELHO
Criação e direção

THIAGO TRAJANO
Arranjos musicais

JULES VANDYSTADT
Arranjos vocais

ROGÉRIO FALCÃO
Cenografia

MARCELO PIES
Figurinos

PAULO CESAR MEDEIROS
Iluminação
ANDERSON SCHINAIDER
Operador de Luz
JIMMY MENEZES
JANSEN CASTELLAR
Operadores de Canhão

MARCELO CLARET
Design de som
LEO LADEIRA
Edição de Conteúdos de Websites e Redes Sociais

TINA SALLES
Coordenação artística

CLAUDIO BOTELHO
Direção musical

CHARLES MÖELLER
Direção

Realização
Möeller & Botelho
Pathavidhatu Empreendimentos Culturais
Clássica Produções  

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domingo, 30 de março de 2014

OSCAR 2014 - Belo Passeio de Gravidade, com Triste Desvio de Rota ao Fim da Viagem




 Belo Passeio de Gravidade, com Triste Desvio de Rota ao Fim da Viagem


 por Fábio Dantas
McConaughey, Blanchett, Nyong'o e Leto: performances laureadas


                   Ano passado, ano de Argo, de Ben Affleck, a Academia cometeu tantas erros e gafes, excluiu tanta gente boa – como o próprio Affleck na categoria de Direção, causando uma comoção/indignação poucas vezes vistas na História – e incluindo outros bem duvidosos – como o engodo Indomável Sonhadora (Beasts of the Southern Wild) – que todos os analistas apostavam em um conservadorismo crasso este ano, uma espécie de seleção segura e conservadora, fugindo ao máximo de riscos. Isso nunca é bom, e como esperado, o resultado final foi decepcionante.

Ellen tem poder: o selfie da História

                    Em um ano com belas obras de autores, como Ela (Her), o conto de fadas futurista/análise do mundo moderno onde predomina a solidão, de Spike Jonze e Nebraska, o inventário afetivo permeado de nostalgia de Alexander Payne, a disputa de fato se estabeleceu entre Gravidade (Gravity), de Alfonso Cuarón e 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave), de Steve McQueen. Gravidade, obra-prima de Cuarón, filme que propõe o embata entre homem vs máquina, que consegue aliar simultaneamente técnica excepcional com uma narrativa que investiga o ser humano, formando um todo irresistível, foi  grande vencedor da noite, ganhando sete estatuetas. Porém, não levou o prêmio de melhor filme, que foi para 12 Anos de Escravidão. De certo modo lembrou 1972, quando O Poderoso Chefão (The Godfather) e Cabaret dividiram os prêmios principais, com três e oito estatuetas, respectivamente. A comparação não se sustente apenas por um único – e definitivo – motivo: 12 Anos de Escravidão não é um grande filme.

12 Anos de Escravidão: filme frio e estéril tira o prêmio máximo de Gravidade

         12 Anos de Escravidão é um filme frio, estéril, burocrático e sem força, o extremo oposto do que seu tema dramático e pungente exige.  Os defensores do filme pregam que é o filme mais importante do ano, é um filme necessário, já era tempo de premiar o tema. Contudo, nenhum diz que é um grande filme, que é um trabalho ímpar, uma grande obra cinematográfica. Simplesmente porque não é. Ao aderir às cotas raciais, ao ceder à campanha “It´s time” a Academia retrocede e dá mais um passo em falso e premia um filme meramente mediano por questões alheia à qualidade intrínseca da obra.

          Todos os prêmios para Gravidade são inquestionáveis, sobretudo o de Alfonso Cuarón, o Maestro que rege a sinfonia de silêncios e imersão profunda que o filme é. Bravo! bravo! bravo!
 
Alfonso Cuarón com seus dois Oscars, de Direção e Montagem por Gravidade

                        
            Dentre os intérpretes, equivalências distintas entre os vencedores. Cate Blanchett, gigante surgida no final dos 90’s com Elizabeth, é uma das raras unanimidades reais dentre as atrizes da atualidade. Com a grande vantagem de escolher sempre os filmes certos e nunca entrar em projetos duvidosos, como vários colegas fazem com certa frequência. Sua vitória em Blue Jasmine, do Mestre Woody Allen – que neste ano atingiu a inacreditável marca de dezesseis indicações como roteirista, com três prêmios – era uma das mais certas nos últimos anos. É uma performance extraordinária, que modula com precisão as múltiplas nuances e oscilações de sua Jasmine – mezzo Blanche DuBois, um personagem de complexidade ímpar, atingindo um resultado assombroso e inesquecível. Blanchett já havia ganhou seu primeiro Oscar como atriz coadjuvante interpretando a lendária Katharine Hepburn em O Aviador (The Aviator), de Martin Scorsese. Justiça para uma atriz que é quase um milagre e das poucas que de fato pode atingir o topo do patamar da imortalidade plena que só os gênios absolutos podem almejar. Blanchett é uma atriz transcendental. 

 
Cate Blanchett: Atriz Transcendental com performance antológica em Blue Jasmine

                  Matthew McConaughey venceu como Ron Woodroof, eletricista mulherengo, machista e ignorante que descober ser soropositivo em Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club), filme bem-intencionado e de resultados razoáveis. É uma boa performance, embora calcada na fórmula desgastada da transformação física. Definitivamente, uma vitória para as performances intensas – na expansão e introspecção, respectivamente – de Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street (The Wolf o Wall Street) e Bruce Dern em Nebraska deixariam tudo mais nobre e justo. Jared Leto, colega de filme de McConaughey, venceu como ator coadjuvante e uma análise atenta deixa evidente como a construção de personagem dos dois atores está a anos-luz de distância. Leto entra em um processo de imersão em sua Rayon que vai além de transformação física, gestual ou vocal. Ele imprime alma e personalidade valiosas a u personagem que poderá facilmente cair no caricatural. Feito notável para um ator até então de resultados – e oportunidades – modestos. Completando a lista, Lupita Nyong’o venceu como atriz coadjuvante por 12 Anos de Escravidão. Pode-se dizer que foi uma das vitórias mais fáceis em muito, muito tempo, pois Lupita, com exceção da cena do sabão, não faz praticamente nada durante o filme, sequer tem boas cenas ou momentos de destaque. A última cena de sua personagem parece uma alegoria: ao ver Solomon (Chiwetel Ejiofor) partir rumo à liberdade, ela sai de foco em cena enquanto cai no chão. A personagem é basicamente isso, um borrão. E embora a atriz esteja se tornando ícone fashion, acabou se aproveitando pela categoria estar totalmente emaranhada, com candidatas potencialmente não premiáveis – caso das duas performances mais fortes da categoria, de Julia Roberts e Jennifer Lawrence.

                    
Matthew McConaughey: 30 kg a menos e um Oscar por Clube de Compras Dallas
 
Jared Leto: brilhante como o transsexual Rayon em Clube de Compras Dallas
Lupita Nyong'o e seu Oscar por 12 Anos de Escravidão

                  Spike Jonze venceu seu primeiro Oscar de Roteiro Original por Ela. Merecidíssimo e mais que esperado, enquanto John Ridley venceu por 12 Anos de Escravidão, batendo concorrentes muito mais fortes como Richard Linklater, Julie Delpy, Ethan Hawke pelo belíssimo Antes da Meia-Noite (Before Midnight). O italiano A Grande Beleza (La Grande Bellezza/ The Great Beauty), de Paolo Sorrentino vencendo como Filme Estrangeiro e Frozen- Uma Aventura Congelante (Frozen), de Chris Buck e Jennifer Lee, dando mais um prêmio de Longa de Animação para a Disney, confirmaram seu favoritismo. Este último venceu também o prêmio de melhor canção original, Let It Go, de Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez, interpretada pela diva da Broadway Idina Menzel.

O diretor Spike Jonze e seu Oscar de Roteiro Original por Ela

Idina Menzel entoa a belíssima Let It Go, de Frozen
                  No computo geral, em uma ano que trouxe obras tão fortes e díspares, houve muitos premiados com justiça. Pena que alguns dos principais prêmios, inclusive o de melhor filme, tenha ido para um filme impessoal, que causa mais distanciamento do que identificação com o pungente drama que narra. Vitória por conta de cotas raciais e postura politicamente correta é uma vitória pálida, sem brilho. O que, ironicamente, condiz com o filme.