"Animais
Noturnos" (Nocturnal Animals), Tom Ford, 2016.
Noir Contemporâneo e Metalinguístico faz elegia à Vitória
do Herói Romântico
por Fábio Dantas
Flappers
Prólogo: Nos últimos anos, o Cinema
nos deu duas obras superlativas, prestam um tributo à Literatura, em uma
engendrada teia metalinguística onde realidade e ficção e autor e personagem são
fundidos de forma brilhante e surpreendente. Em As Horas (The Hours), de Stephen Daldry, 2002, acompanhamos a
lendária escritora Virginia Woolf (em performance assombrosa e premiadíssima de
Nicole Kidman) durante o processo de produção de Mrs. Dellaway em 1923, obra
que influenciará diretamente as vidas de Laura Brown (Julianne Moore), uma dona
de casa em 1951 e Clarice Vaughan (Meryl Streep), uma editora literária em
2001. Em Desejo e Reparação (Atonement),
de Joe Wright, 2007, a escritora Briony Tallis, em três fases de sua vida (as
espetaculares Saoirse Ronan, Romola Garai e Vanessa Redgrave), manipula,
rascunha, cria e recria a vida e a história de amor de sua irmã Cecilia (Keira
Knightley) e Robbie Turner (James McAvoy). Ambos os filmes são permeados por
signos, elipses e referências acerca do ato de criação, do elemento autobiográfico
– em maior ou menor grau – presente em toda obra e da sensação de onipotência
que todo escritor tem em si, a sensação
de brincar de Deus dentro de seu universo criativo. Aos lado dos filmes anteriores
podemos acrescentar mais um: Animais
Noturnos (Nocturnal Animals), de Tom
Ford, 2016.
Capítulo 1: Nova York. Noite. Neve.
Edward e Susan se reencontram na rua anos depois da Universidade. Há algo
lúdico e romântico no ar. Eles conversam, flertam discretamente, marcam um
jantar. Neste, descobrem afinidades, fazem
revelações, trocam confidências. Estabelecem aquela misteriosa e fascinante
intimidade que surge entre estranhos, ou meros conhecidos. Se apaixonam. Decidem se casar. Não tem a
aprovação da mãe de Susan. Ainda assim, se casam. Edward está escrevendo sua primeira obra. Como
sua mãe lhe alertara, Susan passa a ver Edward como romântico, sonhador, sem
senso prático. O casamento entra em crise. Pontos de vista divergentes. Ideais
divergentes. Susan se permite flertar com outro homem. Susan comete um ato
irreversível, definitivo. Susan deixa Edward de vez.
Edward e Susan, afinidades, confissões e despertar de amor |
Capítulo 2: Los Angeles. Noite. Fogos
de artifícios e luzes artificiais. Mulheres obesas, nuas e provocantes de
exibem sensualmente. Figuras robustas que poderiam soar renascentistas, mas que
estão muito mais para criaturas barrocas. Fazem parte de uma performance na
Galeria de Arte de Susan. Há algo fake
e kitsch no ar. Susan sente-se aprisionada
em um casamento mecânico com Hutton, um empresário distante e infiel, o homem
por quem abandonou Edward há quase vinte anos. Susan sente-se infeliz, vazia,
em um mundo de aparências, adornado por frivolidades e suportável com o uso de
tranquilizantes. Um mundo frívolo e superficial, como boa parta de arte
contemporânea que vende. Inesperadamente, recebe um manuscrito de "Animais
Noturnos", o novo romance de Edward.
Ele avisa que está na cidade para o lançamento da obra e gostaria de vê-la.
Susan descobre que o livro é dedicado a ela e começa a leitura. Em pouco tempo
está totalmente absorta e profundamente tocada pela obra de Edward.
Susan: arrebatada pela obra de Edward |
Capítulo 3: Texas. Tarde. Sol e
poeira. Tony (novamente Jake Gyllenhaal, contraparte do autor vestido de personagem),
sua mulher Laura (Isla Fischer) e filha India (Ellie Bamber) embarcam em uma
viagem de carro pelo Texas. Decidem viajar a noite toda sem pausas. Na estrada
deserta e sem sinal de mobile, percebem dois carros dirigindo paralelamente, ambos
na mesma baixa velocidade. Tony tenta ultrapassar um dos carros para seguir
adiante, mas os motoristas reagem com hostilidade e passam a provocar e intimidar
a família, até cercar seu carro e fazê-los parar. Os motoristas são de três
homens, liderados por Ray. Há algo soturno e ameaçador no ar. Laura e India,
respectivamente reagem com medo e revolta, enquanto Tony procura ser
conciliador e resolver a situação pacificamente. Gradativamente, o pânico e a
tragédia se impõe nas estradas do árido sudoeste americano.
Pesadelo de uma família: Ray e sua gangue atacam Tony... |
... Laura e India em plena estrada deserta |
Notas do Crítico: Tom Ford cria uma
obra singular. Se já tinha deixado uma
excelente impressão com Direito de Amar (A Single Man), 2009,
aqui vai além. Ao adaptar a novela Tony
and Susan, de Austin Wright, Ford cria um filme noir contemporâneo, com um universo extremamente particular, que vai idílico ao kitsch, do grotesco ao realista,
em uma atmosfera instigante e intrigante. Como já dito, o filme é absolutamente
metalinguístico, repleto de códigos internos e referências que o espectador só
vai desvendando com o decorrer da narrativa. Nenhuma peça está ali por acaso. Tudo
o que a olhos desatentos pode parecer desconexo, gratuito, mesmo apelativo e em
desalinho é absolutamente proposital. Todos os signos e pistas estão às claras,
basta atenção e percepção para
decodificá-los. Um exemplo são os personagens coadjuvantes que interagem com
Susan - com exceção de seu marido
Hutton, também presente no passado. Sua mãe Anne Sutton (Laura Linney), seus
amigos Alessia (Andrea Riseborough) e Carlos (Michael Sheen), suas assistentes Sage
(Jena Malone) e Alex (Zawe Ashton) e sua filha Samantha (India Menuez), todos
tem uma única cena no filme. Todos fazem
pequenas aparições, são quase espectros, peças meticulosamente
escolhidas para pontuar aspectos da personalidade de Susan - ou servir como sua
consciência. Muito da aura do filme se deve à fotografia de Seamus McGarvey e
sobretudo ao Desenho de Produção e Decoração de Cenários de Shane Valentino e
Meg Everist, quase personagens servindo à narrativa. Os cenários evocam um mundo materialista,
regido por ostentação e pretensões gigantescas, que mais revelam sua
fragilidade, gosto duvidoso e seu caráter descartável, asséptico e impessoal.
Tom Ford dirigindo Jake Gyllenhaal e Michael Shannon |
Ford mostra-se um exímio diretor de
atores e conta com um elenco estrelar e talentoso, bastante homogêneo e
consciente de seu espaço. Adams tem um
papel difícil, que embora complexo é carregado de neutralidade, e nos passa
toda a frustraçao e melancolia de Susan, atingindo seu ponto máximo na cena
final, com olhar e silêncio potentes. Excelentes estão Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson
e Laura Linney. Shannon é marcante e
incisivo como o policial Bobby, que vai
guiar Tony na busca pelos criminosos;
pragmático, realista e cru, é o contraponto perfeito ao relutante Tony.
Taylor-Johnson tem o melhor momento de sua carreira como o hipnotizante e
assustador Ray, em uma composição que em nenhum momento cai na caricatura ou no
exagero. Linney é grande em sua única cena, como a Sra. Sutton, mãe de Susan, lançando
uma sentença que se revelará vital para a trama, comprovando a impressionante
sagacidade das mãe sobre seus filhos. Gyllenhaal, o melhor ator de sua geração ao
lado de Andrew Garfield e Ryan Gosling, tem mais um grande momento em uma
carreira que segue irretocável. Edward é cativante em seus anos de juventude, e
sua imagem se mantém onipresente, mesmo que quase invisível no tempo presente.
Tony é frágil e comovente como o marido e pai devastado, destruído pela culpa e
remorso, e convincente como o homem que se torna mais resistente e incisivo
pela dor. Tony acaba funcionando como a imagem perfeita do herói trágico, em um
intrigante inversão de espelhos criada por Edward.
Michael Shannon: detetive Bobby |
Aaron Taylor-Johnson: Ray, delinquente e criminoso |
Laura Linney: Sra. Sutton, mãe de Susan |
O tempo presente é de Susan, é todo
construído sobre suas insatisfações e desilusões, Contudo, embora o presente
seja o ato de Susan, é Edward quem o conduz. É sua obra ficcional com tons
autobiográficos que atinge a vida de Susan e abala sua rotina monocórdia,
trazendo alguma luz e cor ao seu universo monocromático. Com sua obra de
ficção, Edward exorciza seus fantasmas, trabalha seus traumas e realiza seu
acerto de contas com o passado. Não cabe tentar descobrir as contrapartes
ficcionais dos personagens reais. Não cabe adivinhar se Tony é Edward ou Susan,
se Laura ou Ray espelhos da própria Susan ou se Bobby representa o alter ego
forte de Edward. Todos são partes de Edward, pois ele está acima de todos, é o
autor-criador. Estabelece um paradoxo se pensarmos na analogia com o conceito
da morte do autor, de Barthes. Edward pode ser invisível, e também pode ser
todos, pode ser partes, pode construí-los com fragmentos de si mesmo, de Susan,
da Sra. Sutton, de sua própria filha. Pode ser todos e nenhum.
Susan, surpresa com uma triste constatação. |
Epílogo: Edward é o herói romântico.
Idealista, um pouco ingênuo, sonhador. O
artista por excelência. Que precisa de incentivo, de apoio, de compreensão. Que
persiste e acredita. Que, diante das rasteiras da vida e das cicatrizes que
sempre vão arder, ainda insiste em ficar de pé. Que, ainda que tardiamente e
com tempo defasado, crê poder chegar em seu objetivo e conquistar o seu lugar.
Edward queria a confiança de sua amada. Queria que ela se mantivesse fiel a
ele: "Quando você ama alguém, tem que ter cuidado com isso. Você pode nunca
mais ter isso novamente". Edward foi menosprezado, desacreditado, traído. Mas
teve forças para criar uma obra-prima feita de lágrimas e sangue, com a qual
finalmente obteve reconhecimento e provou ser um grande escritor. E ainda pode
dar sua mensagem final: ele venceu. Ele, tido por fraco, sempre foi realmente o
forte. Susan, seu grande amor, tornou-se apenas uma escada para seu triunfo.
Uma estátua que bem podia constar no acervo de sua galeria, sentada sozinha em
um restaurante vazio, contemplando o que podia ter sido.
Ficha Técnica no IMDb: http://www.imdb.com/title/tt4550098/?ref_=nv_sr_1