domingo, 26 de janeiro de 2014

THE BOOK OF MORMON





Ato de fé

por Fábio Dantas

            
                    Elder Price é um jovem bonito, inteligente, charmoso, carismático, bem articulado, vaidoso, ciente de todas as suas qualidades e de sua capacidade de persuasão. Price, a primeira vista, passa por um ator famoso, um astro musical ou um esportista de sucesso. Mas,não, Elder Price não é nada disso: ele é um missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Como o mais brilhante integrante de um grupo de meninos que querem levar a palavra do Livro de Mórmon pelo mundo, Price espera desempenhar sua função em Orlando, nos EUA, e obter sucesso - e por que não estrelato? - em sua missão. Porém, quando os dirigentes da igreja decidem a localidade onde os jovens missionários vão passar os próximos dois anos, a Price resta Uganda, na África. E para tornar tudo mais catastrófico, seu parceiro será Elder Cunningham, um jovem totalmente descompensado, um freak e nerd que fala como criança e é aficcionado por ícones da cultura pop, como Star Wars, O Senhor dos Anéis e O Rei Leão. Cunningham vê em Price a chance de fazer um novo amigo, e Price não quer sequer ver Cunningham. Ao chegar em seu destino, ambos são recebidos pelo líder do distrito, Elder McKinley, que os recebe com esperança redobrada junto aos outros mórmons, pois até agora eles não conseguiram converter nenhum nativo. Estes são bárbaros, assassinos, estupradores, ladrões, pessoas vivendo no mais absoluta pobreza e selvageria, no meio de uma guerra e uma epidemia de AIDS. Os nativos não mostram interesse algum na palavra de Deus. Então Price precisa usar toda a sua inteligência e capacidade ímpares para se impor diante de seus colegas de fé, para aturar o tresloucado Cunningham e para triunfar em sua missão de levar a palavra do Livro de Mórmon aos nativos de tão inóspito lugar.

Elder Cunningham (Leo Bahia) e Elder Price (Hugo Kerth): dupla inusitada

                    O encontro de Trey Parker & Matt Stone - criadores da série de TV South Park - com Robert Lopez - criador do musical Avenida Q (Avenue Q) - rendeu The Book of Mormon, o musical mais original, iconoclástico, politicamente incorreto e divertido, desrespeitosamente divertido, a conquistar estrondoso sucesso na Broadway nos últimos anos. A produção ganhou nove Tonys em 2011, um feito impressionante para uma montagem que tem, tanto no tema quanto na forma, ares de produção off Broadway. Tratando de temas (ainda) considerados tabu como religião, preconceito étnico, homosexualidade, AIDS, misoginia e venda da fé, tudo com altas doses de humor negro, acidez e farto deboche ao famigerado politicamente correto que assola nossos tempos, a produção conquistou enorme - e de certo modo surpreendente - sucesso de público e crítica, injetando na cena musical contemporânea uma deliciosa irresponsabilidade, fruto de criadores iniciantes, que não carregam o peso do mito - e por isso mesmo se permitem quase tudo. Em muitos casos, isso resultaria em um arremedo de obra, algo vazio e estéril; um embuste. Felizmente, não é o que acontece aqui.

Meninos Missionários: pregando os ensinamentos do Livro de Mormon

                    A montagem brasileira de The Book of Mormon, em cartaz no Teatro Paschoal Carlos Magno, na UNIRIO, é um triunfo. Nova montagem-estudo parte da pesquisa em teatro musical do diretor Rubens Lima Jr., a peça tem formado filas de até sete horas, com espectadores ávidos por uma pré-senha que dá direito a um ingresso (por se tratar de uma montagem universitária, não se paga direitos autorais, portanto não pode vender ingressos). Fora a comoção e o burburinho causado de novembro de 2013 a janeiro de 2014 e o enorme boca a boca entre o público comum, entre estudantes, pesquisadores e críticos e entre a classe artística, resta o principal: a qualidade inegável do espetáculo, que sendo considerado um projeto universitário, está muito além da maioria das produções profissionais que andam pipocando no cenário musical brasileiro.
Rubens Lima Jr. age como o sábio capitão dessa trupe e nos brinda com uma direção coesa e límpida, evitando qualquer excesso, pois sabe que isso o texto já tem de sobra. Mantém-se fiel ao material original e pontual, obtendo um resultado de coesão muito expressivo. Alexandre Amorim é extremamente feliz em sua adaptação, resolvendo com inteligência as muitas referências extremamente americanas do original. O diretor musical Marcelo Farias mantém a sonoridade moderna e o humor do original. Louváveis são os esforços e a inteligência dos cenários e figurinos de João de Freitas Henriques, que com o mínimo do mínimo consegue criar o clima e a ambientação necessária, emoldurada em muito com a colaboração da iluminação de Anderson Ratto. A coreografia de Victor Maia é eficaz e ainda presta uma homenagem aos Mestres do Musical no Brasil - e em breve também na Broadway - Charles Möeller & Claudio Botelho, evocando Gypsy. O maestro Guilherme Menezes realiza um feito notável. Sem o mínimo da estrutura necessária e em uma sala sem a acústica ideal, brilha com ou grupo de músicos excelentes e com os belos vocais da pit singer Renata Figueiredo.

Orquestra de primeira: Maestro Guilherme Menezes (à esquerda) com seus músicos e a bela pit singer Renata Figueiredo

                    O elenco impressiona, pelo simples fato de não haver sequer uma nota dissonante. Em um grupo tão grande e dentre tantos personagens, é natural que uns apareçam - e brilhem - mais que outros, mas é impressionante o trabalho conjunto e a coesão do grupo, que interpreta, canta, dança e até sapateia com habilidade de profissionais. Os ugandenses não ultrapassam a linha de personagens que já estão no limite do exagero e os meninos missionários dosam muito bem a ingenuidade, a histeria, a homosexualidade latente e a crença/descrença em sua missão. Larissa Landim - que alterna Nabulungi com Giulianna Farias - constrói sua personagem com a leveza e delicadeza necessárias, sendo a pérola de esperança dentre os bárbaros ugandenses. Vinicius Teixeira, é ótimo como Elder McKinley, o líder dos missionários, em um desempenho inteligente e bem dosado, que modula muito bem o lado gay histriônico contido do personagem com sua seriedade na liderança do grupo. Leo Bahia é excelente como o ensandecido Elder Cunningham, o personagem que realiza a catarse no público e também nos personagens da peça. A função do personagem é mesmo a de ganhar todos e ser o condutor de humanização à trama, e Bahia executa a função com muita competência.

Vinicius Teixeira (no colo de Gabriel Demartine): ótima composição de Elder McKinley
              
                    O destaque absoluto, contudo, é Hugo Kerth, dando vida ao protagonista Elder Price. Ele oferece uma performance de primeira linha, vivendo o personagem mais difícil e complexo de The Book of Mormon, com um arco dramático amplo, e mil variações. Ainda que seja um anti-herói, egoísta e narcisista compulsivo, é impossível não se render ao charme de Price - em muito ao talento e carisma impressionantes de Kerth. Sua composição é irrepreensível, inteligente, plena de sutilezas, simultaneamente introspectiva e expansiva. Kert se sai maravilhosamente no desafio, envolvendo e tragando o público com seu brilho. É a maior performance masculina vista em musicais brasileiros desde o premiado desempenho de Rodrigo Pandolfo em O Despertar da Primavera, de Möeller & Botelho, em 2009. Hugo Kerth já é um ator pronto e um nome no qual obrigatoriamente todos devem manter atenção.

Hugo Kerth: desempenho excepcional como Elder Price
 
                    A montagem carioca de The Book of Mormon faz-se um marco, por revelar artistas que certamente vão chamar muita atenção em breve, por mostrar que profissionalismo e talento vão muito além de nome e star power e por provar que o teatro, com e sem trocadilho, é um ato de dedicação, amor e fé.


THE BOOK OF MORMON

Texto, Música e Letras: Trey Parker, Robert Lopez e Matt Stone.
Versão Brasileira: Alexandre Amorim
Direção Geral: Rubens Lima Jr.
Direção musical: Marcelo Farias
Orquestrações: Guilherme Menezes
Iluminação: Anderson Ratto
Coreografia: Victor Maia
Cenários e Figurinos: João de Freitas Henriques
Visagismo e Caracterização: Vitor Martinez
Direção de Produção: Marcelo Albuquerque
Produção Executiva Unirio: Bruno Adnet
Produção Executiva Cesgranrio: Bruno Torquatto

Elenco

Hugo Kerth
Leo Bahia
Vinicius Teixeira
Giulianna Farias - Larissa Landim
Andrei Lamberg, Bill Sala, Bruno Nunes, Caio Scot, Flavio Alvarenga, Gabriel Demartine, Guilherme Serrão, Hector Gomes, Isabela Vieira, Isabele Marinho, Leandro Montenegro, Luisa Vianna, Luiz Gofman, Marcus Brandão, Maria Penna Firme, Mayara Ramos, Nando Brandão, Rayssa Bentes, Renata Figueiredo, Rodrigo Morura, Santiago Villalba, Tauã Delmiro, Vitor Martinez.

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2 comentários:

  1. Falou bem. Essa montagem é de encher os olhos. Vale a pena a esperar pra ver um trabalho tão bem feito. Feliz por ver vários conhecidos nessa produção. Parabéns diretores! Parabéns ao incrível Victor Maia pela coreografia! Muitos parabéns pra
    Hugo Kerth, Leo Bahia, Vinicius Teixeira, Luiz Gofman, Vitor Martinez, Caio Scot, Renata Figueiredo, e aos demais, que eu não conhecia. Dentre os meninos, parabenizo dois que me chamaram a atenção:Bruno Nunes e Gabriel Demartine. MERDA, sempre!

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  2. Assisti a original e estou muito orgulhoso de poder ter visto aqui no Brasil. Todos são impecáveis, um maravilhoso trabalho!
    Parabéns! Vi pela quinta vez e cada vez uma sensação muito boa!

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